segunda-feira, 30 de novembro de 2020

IN DEXTRO TEMPORE

 





Marcos Tand

 

Quarta feira, 12 de julho de 1989, 16:45.

- Me liga qualquer hora. Quer dizer, só não à noite, que meus pais estão em casa.

Foi assim que começou. Com essa resposta positiva. Eles não sabiam o que ia acontecer.

Caio estava de bobeira ajudando seu amigo, Betinho, que trabalhava na Alfa Som, a loja de discos mais descolada do Rio de janeiro.

Falavam sobre como o mês das férias começou morno. Esperavam mais agito, mais curtição. Nenhuma festa, nenhuma paquera legal. A escola lhes oferecia mais agito. O telefone tocou.

- Alfa Som, boa tarde – atendeu Betinho, na esperança de que fosse o empresário do Kid Abelha. Seu padrinho e patrão, Teixeira, era produtor cultural e tentava há muito marcar o lançamento do novo LP da banda na loja – Ah tá! Sim, lembro. Puta que me pariu! Era hoje? Achei que fosse só amanhã! Tá bom, relaxa, que eu vou aí voando. Não fecha essa nota antes de eu chegar! Falou.

- Que foi cara? Qual é a parada? – Caio disse franzindo a testa.

- Bicho, segura as pontas aí que em meia hora eu tô de volta, pode ser?

- Pode, mas pra onde você vai?

- Eu tô indo buscar a caixa com os novos fones de ouvido aqui da loja. Esse fornecedor não faz entrega – Betinho se arrumando para sair – Você até podia ir comigo, mas se o Teixeira passa e vê a loja fechada, me descasca!

- De boa, vai lá – Caio joga a chave do carro para Beto – Vai na sombra, na maciota, cuidado com “os homi”.

Betinho apara a chave com a mão direita, bate continência pro amigo e sai da loja correndo. Nenhum dos dois era maior de idade, mas dirigiam. Alberto, como Betinho odiava ser chamado, era filho de um importante promotor. Já o pai de Caio, era um dos bicheiros mais importantes da região. Alfa Som era enorme e por incrível que pareça, estava vazia há umas duas horas. Caio reparou que o LP do Bruce Springsteen tinha finalizado sua última canção e procurava um novo para rodar como música ambiente. Ele se sentia em outro mundo quando estava lá. Era como se todos os problemas de um garoto de 17 anos sumissem.

Olhou para a entrada da loja e percebeu que o movimento na rua estava mais fraco. Viu um fone de ouvido que mais parecia um equipamento da NASA. Deu mais uma conferida na porta e apagou uma das luzes. O tempo de uma música não faria tanta diferença. A música que ele queria ouvir estava no LP cujo encarte era ilustrado por mãos femininas com o polegar apoiado nos bolsos de uma calça jeans.

Caio, pôs o disco na vitrola e selecionou a segunda faixa. A voz do furacão loiro Madonna ecoou nos seus ouvidos e fez vibrar seu mundo particular. Cada frase e batida de “Express Yourself” lhe empolgava mais. O jovem não se aguentou. Fitou mais uma vez a rua pela vitrine e obedeceu seu coração. Desconectou o fone do som e deixou a rainha do pop reinar em toda a loja, ao mesmo tempo em que se divertia inventando uma coreografia  passando por cada corredor e prateleira da Alfa Som.  

Quando a música finalizou, ele observou sua respiração ofegante e ouviu um bater de palmas que vinha da porta de entrada.

- Adorei a reboladinha e a jogada de cabelo no final.

Caio quase cai para trás, mas o susto o fez derrubar alguns discos. A voz era de um rapaz jovem. Moreno, um pouco mais baixo que Caio. Pele clara, cachos escuros e sorriso sarcástico.

- Você tava aí esse tempo todo? – disse Caio com os olhos saltando.

- Aham, tava. Esse show é de graça? Adoraria assistir mais vezes...

- Eu tô só ajudando um amigo. Ele saiu, aí tô quebrando esse galho. Mas, ele volta já já. Posso te ajudar? Os lançamentos são naquela prateleira ali à direita – Caio tentava desconversar e arrumar a bagunça.

- Tá certo.

Um absurdo silêncio se fez. Nem parece que Caio tinha incorporado a própria Madonna há poucos minutos atrás. O cliente se chamava Mateus e não conseguia disfarçar os olhares endereçados à Caio, que fingia muito mal não perceber.

Caio tinha a pele bem bronzeada, mas não gostava muito de praia. Gostava de carros, mas principalmente de motocicletas. Nem tanto pelos veículos em si, até porque não sacava nada de mecânica, mas pela sensação de liberdade que dirigir lhe proporcionava. Cresceu com piscina no quintal, mas era todo cheio de frescura com água salgada, dizia que acabava com seu amado e intocável cabelo. Fazia o estilo bad boy. No fundo a pose era só uma casca para agradar o pai bicheiro, que o preparava contra sua vontade para assumir “o negócio da família”. Talvez se fosse só o bicho ele não se sentisse tão sujo, mas tinha o pó. Nenhum bicheiro conseguiu escapar; ou entrava na onda do momento, ou morria de fome.

Caio não curtia e tentava fugir desse destino. Com seu amigos Beto, Mel e Kadu, ele sonhava com um futuro melhor. Ele não sabia o que exatamente significava “melhor”, mas queria demais. Queria tanto que às vezes saía de órbita só imaginando o que lhe aconteceria após o colegial.

- ALÔ! PLANETA TERRA CHAMANDO! – Mateus estalava os dedos bem na cara de Caio.

- Opa! Foi mal. Já escolheu?

- Já escolhi dois e tô em dúvida com esse aqui. Posso ouvir um pouco?

- Pode sim. Vai querer fones?

- Nada. Taca som em tudo!

O disco era Patrícia da cantora Patrícia Marx, lançado no ano anterior. Caio olhou para capa e pensou “Sério, que ele ouve isso?”. A fisionomia transpareceu seu pensamento e Mateus percebeu.

- Você deve estar achando que eu sou um carinha bem piegas. Mas é que eu queria muito esse disco, a voz dela me deixa de coração quentinho – os dois ficaram em silêncio – Nossa, agora isso sim foi piegas! – Os dois riram – Você pode pôr a terceira música do lado A? Adoro essa canção.

Caio conseguiu pôr o disco na vitrola. A voz doce de Patrícia realmente trouxe um aconchego inexplicável cantando “Doçura”. Mateus dublava a música como se cada nota lhe transpassasse o corpo. A vitrola parou do nada, deu pau. Ele continuou cantando sem perceber. Caio ficou encantado com sua voz não menos doce que a de Patrícia. Foi pouca coisa, uns quatro segundos, mas o suficiente para que Mateus ficasse vermelho igual morango.

- Putz, que zebra hein! Não sei se o defeito foi na vitrola ou no disco. Quer tentar outro?

- Agora não. Poxa, tava tão bom...

- E você canta bem, cara. Minha vez de aplaudir – Caio bateu palmas enquanto Mateus fez reverências como que agradecendo. Os dois riram.

- Que nada. Não é pra tanto. Eu só gosto de brincar de cantar. Essa música é fofa demais.

- Devo admitir que é mesmo.

- Só não é mais fofa do que você... – Mateus continuava vermelho como um moranguinho envergonhado, mas tinha que conseguir pelo menos o telefone do dançarino bronzeado.

- É...então...não vai levar pra casa a música fofa? Daí você treina um show no banheiro – Caio estava sem graça e fingindo analisar o vinil procurando algum defeito – Não tô vendo aqui nenhuma falha, mas você pode levar uma fita cassete. Ainda tem...

- Vou querer sim. Onde tá?

- Pego pra você – Caio vai até a prateleira das fitas cassete sentindo que seu estômago tinha virado um grande borboletário. Ele não entendia a causa do suor brotar em suas mãos. Percebeu que não escapava do olhar predador de Mateus ao retornar ao balcão.

- Cara, você já tem cadastro aqui? Eles sempre tem descontos muito bons pra quem é do clube Alfa.

- Ainda não tenho. Demora pra fazer?

- Nada, aqui é the flash. Escrevo aqui no papel, depois o Beto põe no computador. Ainda não me dou com essa máquina. Como você se chama?

- Mateus...e o seu?

- Caio – ele não queria ter dito. Era como se agora tivesse exposto e indefeso. Não sabia porque estava tão na defensiva; ou sabia, mas precisava ignorar. Terminou o cadastro e se deu conta de que os dois moravam bem próximos e até suas respectivas escolas eram vizinhas. Mateus era simpático, tinha o sorriso bem bonito. Porém, Caio não sabia como se comportar diante de alguém que fugia do padrão socialmente aceito de masculinidade, principalmente se esse alguém lhe despertasse borboletas no estômago e suor nas mãos. Alguém que ele sabia ser como ele, cuja semelhança ele tanto reprimia para não sofrer nas mãos do próprio pai.

Todo mundo tem segredos que não conta nem para si mesmo.

- Então, vou levar esses: a Debbie Gibson e o cassete da Patrícia. Espero conseguir esconder – Disse Mateus comprimindo um lábio no outro.

- Esconder porquê? Como assim?

- Esconder dos meus pais. Do meu pai principalmente. Ele diz que é “música de viado”- Mateus sofria mais repressão dentro de casa por causa do que seus pais chamavam de “jeito”. Eles nunca o entenderam; só queriam não ser motivo de piada. O custo era podar o menino em todas as suas autênticas expressões do ser.

- Ah sim.

Caio não soube o que dizer, só olhou para Mateus com cara de solidariedade, enquanto colocava os produtos na sacola.

- Você também acha que é coisa de viado ouvir essas músicas? – Mateus encarou os olhos castanhos de Caio com profundidade.

Caio mexeu no cabelo e em um segundo lembrou que nunca conseguiu assistir a uma novela inteira, pois seu pai não permitia. “Novela é coisa de maricas! Você quer ser uma mulherzinha?”, cansou de ouvir e desistiu de acompanhar qualquer uma delas. Quando muito, ele conseguia que sua mãe lhe contasse o desenrolar da trama.

- Não. Não mesmo. Eu mesmo não tenho costume de ouvir essas cantoras, mas achei legal.

- Ah, bom! Não esperava menos do melhor dançarino de Madonna que já vi até agora. Só perde pra original, óbvio. Até porque, se Madonna não for “coisa de viado”, eu não sei mais o que é - Os dois riram.

- Você é engraçado, cara.

- Ah, que bom! Espera, isso foi um elogio, né?

- Posso te ligar nesse número? – Caio não esperava dizer isso. Seu coração acelerou de forma quase explosiva. Foi uma frase que saiu quase que involuntariamente. Foi como se as borboletas saíssem do estômago e se transformassem em palavras atrapalhadas.

Mateus hesitou por uns três segundos. Ele também não esperava que Caio lhe fizesse essa pergunta e ainda de forma tão atropelada.

- Me liga qualquer hora. Quer dizer, só não à noite, que mais pais estão em casa. Agora eu preciso ir, que tô atrasado pra aula de inglês. Já é de graça, não posso faltar. Vou esperar você ligar. Até depois.

Mateus saiu da loja com o coração aquecido e não só por causa da canção de Patrícia Marx. Caio estava vermelho, sentindo-se surpreso consigo mesmo.

Às 17:25 Beto voltou com um caixa. Ele achou o amigo meio diferente. Caio disse que não podia mais ficar, que havia se esquecido de um compromisso em casa. Ele deu longas voltas de carro pensando na vida. Não podia dividir isso com ninguém. Por mais legal que fossem seus amigos, não tinha certeza de que iriam mesmo ficar ao seu lado. Além do mais, ele precisava de algo só seu e uma amizade com alguém “semelhante” lhe faria muito bem. Ele nunca antes tivera interesse em conhecer outro rapaz assim.

Teve que esperar até o dia seguinte. Lá pelas nove da manhã saiu de casa e procurou um orelhão longe de sua residência, ligou para Mateus. Os dois conversaram por dez minutos e a fila para usar o telefone público só aumentava atrás dele. Marcaram de se ver no fliperama do outro lado da cidade. A tarde foi mega divertida. Caio não sorria de verdade há muito tempo e Mateus era de fato muito engraçado. Caio comprou um walkman só para ouvir a fita cassete que Mateus gravou com suas músicas prediletas. Ambos estavam se descobrindo sem barreiras. Quando juntos o tempo parava. Foi assim no toque, no beijo, no sexo e em tudo que era novo, terno e excitante, que dois garotos como eles, no auge dos 17 anos podiam descobrir. O mês de julho terminou com saldo mais do que positivo. Caio conseguiu sair com os amigos, mas também viver um amor de verão.

No início de agosto, Mateus recebeu uma visita inesperada. Sua tia Cláudia, que foi tentar a vida nos Estados Unidos e trabalhava lá como babá dos filhos de uma família milionária. A mesma convenceu seus pais de o levar com ela para os EUA. Era ela que pagava seu curso de inglês. Mateus iria estudar em um bom colégio americano. Seus pais não queriam ter um filho como ele por perto e ao mesmo tempo queriam o melhor para ele. Uniram o útil ao agradável.

Mateus e Caio tiveram uma noite linda de despedida, mas sem juras de amor. Caio jamais achou que choraria por alguém, mas não se conteve ao chegar em casa e deitar sobre o travesseiro. Aquela foi uma noite difícil. O período letivo na terra do Tio Sam se inicia no mês de setembro. Mateus ainda teve um mês inteiro para se adaptar e aprimorar o seu inglês que era muito bom.

Um não teve mais notícia do outro. Foi assim até 1993.

Filho único, Mateus veio cuidar da mãe depois que seu pai faleceu por AVC. Não pensava em procurar Caio. Os dois já não tinham mais nada a ver. Foi um ano obscuro; o martírio de não ter se despedido, nem verdadeiramente se reconciliado com o pai antes de sua morte, era insuportável. Tentava se distrair como podia, até arrumou um emprego como professor particular de inglês e estava se virando bem.



Em uma tarde quente, Mateus passa em frente a Alfa Som e seus olhos são hipnotizados pelo cartaz que anunciava a venda de ingressos para o show de Madonna no estádio do Maracanã. Não pensou duas vezes e gastou metade do que tinha economizado. Veria sua diva, nem que fosse da última fileira. Ao adentrar na loja, lembrou-se inevitavelmente do rapaz bronzeado que dançava Madonna como se mais nada importasse. O rapaz que ele nunca esquecera. Com sorte, encontrou ingresso em lugar em frente ao palco e lembrou do cadastro de fidelidade da loja. O desconto foi uma benção.

6 de novembro de 1993.

A The Girlie Show World Tour só começou de verdade quando ele avistou, entre luzes de todas as cores, o rapaz de sorriso torto. Ele dançava muito mais livre, a pele bronzeada e os cabelos no ombro não negavam. Caio finalmente conseguira dançar “Express Yourself” sem medo de ser visto. Ele estava rodeado de amigos. Mateus tentou controlar as pernas, mas elas não obedeciam, só caminhavam na direção de Caio.

- CAIO!!! – Mateus gritou com a voz trêmula de nervosismo.

Caio virou-se confuso, olhou ao redor para ver se alguém tinha gritado seu nome ou se eram apenas ruídos do show. Deu de cara com Mateus e seu rosto transpareceu a mesma expressão de uma criança perdida que reencontra a mãe.

- Eu sabia – Mateus sentiu-se novamente com o coração aquecido, como no verão de 1989.

- MATEUS!!! – Caio puxou Mateus pela cintura e o abraçou muito forte. Os dois se olharam e não houve nada mais. O tempo parou novamente. O beijo veio ainda mais forte do que o abraço, como se um quisesse se nutrir do outro – NÃO ME DEIXA NUNCA MAIS!

As pessoas que estavam em volta começaram a aplaudir e os amigos de Caio, Beto, Mel e Kadu, olharam surpresos.

- Seus amigos estão olhando – Mateus disse meio acanhado. Caio logo fez as honras.

- Betinho, Melissa e Kadu. Esses são os meus melhores amigos. E, gente...esse é o Mateus! Foi ele que apareceu nas cartas que sua vó jogou pra mim, Mel! Ela tava certa. Agora eu acredito! Quero saber se vocês podem incluir ele no grupo...

- Brother, se você tiver feliz, eu também tô! – Disse Beto cumprimentando Mateus.

- A gente tá fechado e tu sabe disso – Kadu abraçou os dois.

- Pois eu digo: O que Madonna uniu, o homem não separa! – Melissa disse fazendo gesto de sinal da cruz e abraçando o casal.

Caio e Mateus curtiram o show como uma grande celebração. Estavam se casando sob as bençãos da rainha do pop e não tinham ideia de que realmente seria para sempre.

 

“Agradeço especialmente ao amigo Henrique Melo pelo convite para esse projeto e à maravilhosa Mylena Andrade pela ajuda na revisão.”  (O autor)