Marcos Tand
Quarta feira, 12 de julho
de 1989, 16:45.
- Me liga qualquer hora.
Quer dizer, só não à noite, que meus pais estão em casa.
Foi assim que começou.
Com essa resposta positiva. Eles não sabiam o que ia acontecer.
Caio estava de bobeira ajudando
seu amigo, Betinho, que trabalhava na Alfa Som, a loja de discos mais descolada
do Rio de janeiro.
Falavam sobre como o mês
das férias começou morno. Esperavam mais agito, mais curtição. Nenhuma festa,
nenhuma paquera legal. A escola lhes oferecia mais agito. O telefone tocou.
- Alfa Som, boa tarde –
atendeu Betinho, na esperança de que fosse o empresário do Kid Abelha. Seu
padrinho e patrão, Teixeira, era produtor cultural e tentava há muito marcar o
lançamento do novo LP da banda na loja – Ah tá! Sim, lembro. Puta que me pariu!
Era hoje? Achei que fosse só amanhã! Tá bom, relaxa, que eu vou aí voando. Não
fecha essa nota antes de eu chegar! Falou.
- Que foi cara? Qual é a
parada? – Caio disse franzindo a testa.
- Bicho, segura as pontas
aí que em meia hora eu tô de volta, pode ser?
- Pode, mas pra onde você
vai?
- Eu tô indo buscar a
caixa com os novos fones de ouvido aqui da loja. Esse fornecedor não faz
entrega – Betinho se arrumando para sair – Você até podia ir comigo, mas se o
Teixeira passa e vê a loja fechada, me descasca!
- De boa, vai lá – Caio
joga a chave do carro para Beto – Vai na sombra, na maciota, cuidado com “os
homi”.
Betinho apara a chave com
a mão direita, bate continência pro amigo e sai da loja correndo. Nenhum dos
dois era maior de idade, mas dirigiam. Alberto, como Betinho odiava ser
chamado, era filho de um importante promotor. Já o pai de Caio, era um dos
bicheiros mais importantes da região. Alfa Som era enorme e por incrível que
pareça, estava vazia há umas duas horas. Caio reparou que o LP do Bruce
Springsteen tinha finalizado sua última canção e procurava um novo para rodar
como música ambiente. Ele se sentia em outro mundo quando estava lá. Era como
se todos os problemas de um garoto de 17 anos sumissem.
Olhou para a entrada da
loja e percebeu que o movimento na rua estava mais fraco. Viu um fone de ouvido
que mais parecia um equipamento da NASA. Deu mais uma conferida na porta e
apagou uma das luzes. O tempo de uma música não faria tanta diferença. A música
que ele queria ouvir estava no LP cujo encarte era ilustrado por mãos femininas
com o polegar apoiado nos bolsos de uma calça jeans.
Caio, pôs o disco na
vitrola e selecionou a segunda faixa. A voz do furacão loiro Madonna ecoou nos
seus ouvidos e fez vibrar seu mundo particular. Cada frase e batida de “Express
Yourself” lhe empolgava mais. O jovem não se aguentou. Fitou mais uma vez a rua
pela vitrine e obedeceu seu coração. Desconectou o fone do som e deixou a
rainha do pop reinar em toda a loja, ao mesmo tempo em que se divertia
inventando uma coreografia passando por
cada corredor e prateleira da Alfa Som.
Quando a música
finalizou, ele observou sua respiração ofegante e ouviu um bater de palmas que
vinha da porta de entrada.
- Adorei a reboladinha e
a jogada de cabelo no final.
Caio quase cai para trás,
mas o susto o fez derrubar alguns discos. A voz era de um rapaz jovem. Moreno,
um pouco mais baixo que Caio. Pele clara, cachos escuros e sorriso sarcástico.
- Você tava aí esse tempo
todo? – disse Caio com os olhos saltando.
- Aham, tava. Esse show é
de graça? Adoraria assistir mais vezes...
- Eu tô só ajudando um
amigo. Ele saiu, aí tô quebrando esse galho. Mas, ele volta já já. Posso te
ajudar? Os lançamentos são naquela prateleira ali à direita – Caio tentava
desconversar e arrumar a bagunça.
- Tá certo.
Um absurdo silêncio se
fez. Nem parece que Caio tinha incorporado a própria Madonna há poucos minutos
atrás. O cliente se chamava Mateus e não conseguia disfarçar os olhares
endereçados à Caio, que fingia muito mal não perceber.
Caio tinha a pele bem
bronzeada, mas não gostava muito de praia. Gostava de carros, mas
principalmente de motocicletas. Nem tanto pelos veículos em si, até porque não
sacava nada de mecânica, mas pela sensação de liberdade que dirigir lhe
proporcionava. Cresceu com piscina no quintal, mas era todo cheio de frescura
com água salgada, dizia que acabava com seu amado e intocável cabelo. Fazia o
estilo bad boy. No fundo a pose era só uma casca para agradar o pai bicheiro,
que o preparava contra sua vontade para assumir “o negócio da família”. Talvez
se fosse só o bicho ele não se sentisse tão sujo, mas tinha o pó. Nenhum
bicheiro conseguiu escapar; ou entrava na onda do momento, ou morria de fome.
Caio não curtia e tentava
fugir desse destino. Com seu amigos Beto, Mel e Kadu, ele sonhava com um futuro
melhor. Ele não sabia o que exatamente significava “melhor”, mas queria demais.
Queria tanto que às vezes saía de órbita só imaginando o que lhe aconteceria
após o colegial.
- ALÔ! PLANETA TERRA
CHAMANDO! – Mateus estalava os dedos bem na cara de Caio.
- Opa! Foi mal. Já
escolheu?
- Já escolhi dois e tô em
dúvida com esse aqui. Posso ouvir um pouco?
- Pode sim. Vai querer
fones?
- Nada. Taca som em tudo!
O disco era Patrícia
da cantora Patrícia Marx, lançado no ano anterior. Caio olhou para capa e
pensou “Sério, que ele ouve isso?”. A fisionomia transpareceu seu pensamento e
Mateus percebeu.
- Você deve estar achando
que eu sou um carinha bem piegas. Mas é que eu queria muito esse disco, a voz
dela me deixa de coração quentinho – os dois ficaram em silêncio – Nossa, agora
isso sim foi piegas! – Os dois riram – Você pode pôr a terceira música do lado
A? Adoro essa canção.
Caio conseguiu pôr o
disco na vitrola. A voz doce de Patrícia realmente trouxe um aconchego
inexplicável cantando “Doçura”. Mateus dublava a música como se cada
nota lhe transpassasse o corpo. A vitrola parou do nada, deu pau. Ele continuou
cantando sem perceber. Caio ficou encantado com sua voz não menos doce que a de
Patrícia. Foi pouca coisa, uns quatro segundos, mas o suficiente para que
Mateus ficasse vermelho igual morango.
- Putz, que zebra hein!
Não sei se o defeito foi na vitrola ou no disco. Quer tentar outro?
- Agora não. Poxa, tava
tão bom...
- E você canta bem, cara.
Minha vez de aplaudir – Caio bateu palmas enquanto Mateus fez reverências como
que agradecendo. Os dois riram.
- Que nada. Não é pra
tanto. Eu só gosto de brincar de cantar. Essa música é fofa demais.
- Devo admitir que é
mesmo.
- Só não é mais fofa do
que você... – Mateus continuava vermelho como um moranguinho envergonhado, mas
tinha que conseguir pelo menos o telefone do dançarino bronzeado.
- É...então...não vai
levar pra casa a música fofa? Daí você treina um show no banheiro – Caio estava
sem graça e fingindo analisar o vinil procurando algum defeito – Não tô vendo
aqui nenhuma falha, mas você pode levar uma fita cassete. Ainda tem...
- Vou querer sim. Onde
tá?
- Pego pra você – Caio
vai até a prateleira das fitas cassete sentindo que seu estômago tinha virado
um grande borboletário. Ele não entendia a causa do suor brotar em suas mãos.
Percebeu que não escapava do olhar predador de Mateus ao retornar ao balcão.
- Cara, você já tem
cadastro aqui? Eles sempre tem descontos muito bons pra quem é do clube Alfa.
- Ainda não tenho. Demora
pra fazer?
- Nada, aqui é the
flash. Escrevo aqui no papel, depois o Beto põe no computador. Ainda não me
dou com essa máquina. Como você se chama?
- Mateus...e o seu?
- Caio – ele não queria
ter dito. Era como se agora tivesse exposto e indefeso. Não sabia porque estava
tão na defensiva; ou sabia, mas precisava ignorar. Terminou o cadastro e se deu
conta de que os dois moravam bem próximos e até suas respectivas escolas eram
vizinhas. Mateus era simpático, tinha o sorriso bem bonito. Porém, Caio não
sabia como se comportar diante de alguém que fugia do padrão socialmente aceito
de masculinidade, principalmente se esse alguém lhe despertasse borboletas no
estômago e suor nas mãos. Alguém que ele sabia ser como ele, cuja semelhança
ele tanto reprimia para não sofrer nas mãos do próprio pai.
Todo mundo tem segredos
que não conta nem para si mesmo.
- Então, vou levar esses:
a Debbie Gibson e o cassete da Patrícia. Espero conseguir esconder – Disse
Mateus comprimindo um lábio no outro.
- Esconder porquê? Como
assim?
- Esconder dos meus pais.
Do meu pai principalmente. Ele diz que é “música de viado”- Mateus sofria mais
repressão dentro de casa por causa do que seus pais chamavam de “jeito”. Eles
nunca o entenderam; só queriam não ser motivo de piada. O custo era podar o
menino em todas as suas autênticas expressões do ser.
- Ah sim.
Caio não soube o que
dizer, só olhou para Mateus com cara de solidariedade, enquanto colocava os
produtos na sacola.
- Você também acha que é
coisa de viado ouvir essas músicas? – Mateus encarou os olhos castanhos de Caio
com profundidade.
Caio mexeu no cabelo e em
um segundo lembrou que nunca conseguiu assistir a uma novela inteira, pois seu
pai não permitia. “Novela é coisa de maricas! Você quer ser uma mulherzinha?”,
cansou de ouvir e desistiu de acompanhar qualquer uma delas. Quando muito, ele
conseguia que sua mãe lhe contasse o desenrolar da trama.
- Não. Não mesmo. Eu
mesmo não tenho costume de ouvir essas cantoras, mas achei legal.
- Ah, bom! Não esperava
menos do melhor dançarino de Madonna que já vi até agora. Só perde pra
original, óbvio. Até porque, se Madonna não for “coisa de viado”, eu não sei
mais o que é - Os dois riram.
- Você é engraçado, cara.
- Ah, que bom! Espera,
isso foi um elogio, né?
- Posso te ligar nesse
número? – Caio não esperava dizer isso. Seu coração acelerou de forma quase
explosiva. Foi uma frase que saiu quase que involuntariamente. Foi como se as
borboletas saíssem do estômago e se transformassem em palavras atrapalhadas.
Mateus hesitou por uns
três segundos. Ele também não esperava que Caio lhe fizesse essa pergunta e
ainda de forma tão atropelada.
- Me liga qualquer hora.
Quer dizer, só não à noite, que mais pais estão em casa. Agora eu preciso ir,
que tô atrasado pra aula de inglês. Já é de graça, não posso faltar. Vou
esperar você ligar. Até depois.
Mateus saiu da loja com o
coração aquecido e não só por causa da canção de Patrícia Marx. Caio estava
vermelho, sentindo-se surpreso consigo mesmo.
Às 17:25 Beto voltou com
um caixa. Ele achou o amigo meio diferente. Caio disse que não podia mais
ficar, que havia se esquecido de um compromisso em casa. Ele deu longas voltas
de carro pensando na vida. Não podia dividir isso com ninguém. Por mais legal
que fossem seus amigos, não tinha certeza de que iriam mesmo ficar ao seu lado.
Além do mais, ele precisava de algo só seu e uma amizade com alguém
“semelhante” lhe faria muito bem. Ele nunca antes tivera interesse em conhecer
outro rapaz assim.
Teve que esperar até o
dia seguinte. Lá pelas nove da manhã saiu de casa e procurou um orelhão longe
de sua residência, ligou para Mateus. Os dois conversaram por dez minutos e a fila
para usar o telefone público só aumentava atrás dele. Marcaram de se ver no
fliperama do outro lado da cidade. A tarde foi mega divertida. Caio não sorria
de verdade há muito tempo e Mateus era de fato muito engraçado. Caio comprou um
walkman só para ouvir a fita cassete que Mateus gravou com suas músicas
prediletas. Ambos estavam se descobrindo sem barreiras. Quando juntos o tempo
parava. Foi assim no toque, no beijo, no sexo e em tudo que era novo, terno e
excitante, que dois garotos como eles, no auge dos 17 anos podiam descobrir. O
mês de julho terminou com saldo mais do que positivo. Caio conseguiu sair com
os amigos, mas também viver um amor de verão.
No início de agosto,
Mateus recebeu uma visita inesperada. Sua tia Cláudia, que foi tentar a vida
nos Estados Unidos e trabalhava lá como babá dos filhos de uma família milionária.
A mesma convenceu seus pais de o levar com ela para os EUA. Era ela que pagava
seu curso de inglês. Mateus iria estudar em um bom colégio americano. Seus pais
não queriam ter um filho como ele por perto e ao mesmo tempo queriam o melhor
para ele. Uniram o útil ao agradável.
Mateus e Caio tiveram uma
noite linda de despedida, mas sem juras de amor. Caio jamais achou que choraria
por alguém, mas não se conteve ao chegar em casa e deitar sobre o travesseiro.
Aquela foi uma noite difícil. O período letivo na terra do Tio Sam se inicia no
mês de setembro. Mateus ainda teve um mês inteiro para se adaptar e aprimorar o
seu inglês que era muito bom.
Um não teve mais notícia
do outro. Foi assim até 1993.
Filho único, Mateus veio
cuidar da mãe depois que seu pai faleceu por AVC. Não pensava em procurar Caio.
Os dois já não tinham mais nada a ver. Foi um ano obscuro; o martírio de não
ter se despedido, nem verdadeiramente se reconciliado com o pai antes de sua
morte, era insuportável. Tentava se distrair como podia, até arrumou um emprego
como professor particular de inglês e estava se virando bem.
Em uma tarde quente,
Mateus passa em frente a Alfa Som e seus olhos são hipnotizados pelo cartaz que
anunciava a venda de ingressos para o show de Madonna no estádio do Maracanã.
Não pensou duas vezes e gastou metade do que tinha economizado. Veria sua diva,
nem que fosse da última fileira. Ao adentrar na loja, lembrou-se
inevitavelmente do rapaz bronzeado que dançava Madonna como se mais nada
importasse. O rapaz que ele nunca esquecera. Com sorte, encontrou ingresso em lugar
em frente ao palco e lembrou do cadastro de fidelidade da loja. O desconto foi
uma benção.
A The Girlie Show World Tour só começou de verdade quando ele avistou, entre luzes de todas as cores,
o rapaz de sorriso torto. Ele dançava muito mais livre, a pele bronzeada e os
cabelos no ombro não negavam. Caio finalmente conseguira dançar “Express
Yourself” sem medo de ser visto. Ele estava rodeado de amigos. Mateus
tentou controlar as pernas, mas elas não obedeciam, só caminhavam na direção de
Caio.
- CAIO!!! – Mateus gritou com a voz trêmula de nervosismo.
Caio virou-se confuso, olhou ao redor para ver se alguém tinha gritado
seu nome ou se eram apenas ruídos do show. Deu de cara com Mateus e seu rosto
transpareceu a mesma expressão de uma criança perdida que reencontra a mãe.
- Eu sabia – Mateus sentiu-se novamente com o coração aquecido, como no
verão de 1989.
- MATEUS!!! – Caio puxou Mateus pela cintura e o abraçou muito forte. Os
dois se olharam e não houve nada mais. O tempo parou novamente. O beijo veio
ainda mais forte do que o abraço, como se um quisesse se nutrir do outro – NÃO
ME DEIXA NUNCA MAIS!
As pessoas que estavam em volta começaram a aplaudir e os amigos de
Caio, Beto, Mel e Kadu, olharam surpresos.
- Seus amigos estão olhando – Mateus disse meio acanhado. Caio logo fez
as honras.
- Betinho, Melissa e Kadu. Esses são os meus melhores amigos. E,
gente...esse é o Mateus! Foi ele que apareceu nas cartas que sua vó jogou pra
mim, Mel! Ela tava certa. Agora eu acredito! Quero saber se vocês podem incluir
ele no grupo...
- Brother, se você tiver feliz, eu também tô! – Disse Beto
cumprimentando Mateus.
- A gente tá fechado e tu sabe disso – Kadu abraçou os dois.
- Pois eu digo: O que Madonna uniu, o homem não separa! – Melissa disse
fazendo gesto de sinal da cruz e abraçando o casal.
Caio e Mateus curtiram o show como uma grande celebração. Estavam se
casando sob as bençãos da rainha do pop e não tinham ideia de que realmente
seria para sempre.
“Agradeço especialmente ao amigo Henrique Melo pelo convite para esse projeto e à maravilhosa Mylena Andrade pela ajuda na revisão.” (O autor)